A solidão de um homem teria em si algo terrível demais

A solidão de um homem teria em si algo terrível demais
(Foto: Nathalia Segato/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


A pandemia impede a circulação, exige um contato social distanciado e restringe o contato físico. Sua imposição é incomoda por ser compulsória. Essa etiqueta reforçada, assim como diversos aspectos relacionados à pandemia, em certa medida, apresenta-se catalisada. Contudo, não é nova, nem estranha.

Durante a maior parte da história da espécie humana, a sua sobrevivência e evolução estiveram relacionadas ao grupo. A espécie desenvolve a comunicação e a cooperação coletivamente. Esse caminho nos leva ao sedentarismo, à organização do trabalho e das tarefas na comunidade.

A produção de excedentes permite organizações sociais e políticas mais
complexas. Os impérios e seus exércitos mobilizavam multidões. Roma e, depois dela, Istambul eram maravilhas da vida urbana e da coletividade.

Essa precedência do coletivo sobre o individual persiste durante a Idade Média. Nos castelos, nas vilas, nos mosteiros, no trabalho agrícola e nas oficinas a vida era sempre coletiva. O ascetismo dos monges eremitas tomava a solidão, a privação do convívio social, como penitência e sacrifício em busca da revelação divina.

Com a transição para a modernidade, as mudanças econômicas e sociais produziram novos padrões de comportamento. A ideia da solidão, momento de reflexão íntima e de prazeres individuais como a leitura e os passeios, vai se consolidando.

Mesmo que a partir do século 18 a solidão individual reflua em favor da vida familiar, ainda assim essa concepção de vida familiar é nova. É a família nuclear, muito diferente da família extensa existente num espaço de convívio junto de parentes e agregados.

Importante também é a influência sobre o comportamento individual da reforma protestante. Segundo Lutero, a compreensão da bíblia era acessível ao indivíduo. Cada um podia trilhar seu caminho de fé sem a obrigatoriedade de um intermediário.

Os demais líderes da reforma também reforçam essa possibilidade do individualismo com a afirmação da virtude na frugalidade e na ética do trabalho. Essas mudanças advindas da modernidade e do humanismo renascentista permitem aflorar o individualismo e a subjetividade dos indivíduos.

A partir daí os meios materiais, cada vez mais, serão o substrato para a afirmação do individualismo e da solidão como uma forma de sociabilidade antissocial. A evolução da sociedade capitalista burguesa em sua orientação para o consumo e acumulação busca a distinção social.

As complexas relações de transferência dos atributos do objeto para seu possuidor vão se sofisticando e se tornando mais sutis à medida que a sociedade de consumo avança e cria necessidades e possibilidades de consumo cada vez mais refinadas, individualizadas e vinculadas à experiência subjetiva. De certa forma as pessoas são convertidas em icebergs dos quais as pontas visíveis são o fruto de seu consumo.

Igualmente se assemelham aquelas antigas malas de viagem cheias de etiquetas dos portos e países pelas quais passaram. Seu interior não é visível e não é importante. O tema da viagem, numa sociedade globalizada, no contexto da pandemia, é crítico.

Emulando a burguesia europeia que no século 19 estabeleceu o must de realizar o grand tour (ou pelo menos o petit tour) a classe média brasileira, que, com o advento da estabilidade monetária e do aumento de renda e do consumo, sobretudo a partir dos anos 2000, aderiu com entusiasmo ao turismo, vê-se agora estacionada.

As viagens, o cultivo do cosmopolitismo, a agitação dos aeroportos e das grandes cidades são fruídos individual e subjetivamente. Promovem distinção ao serem comunicadas socialmente em conversas que parecem competições de milhagem.

Assim, o sentido dessa reflexão revela a construção progressiva de uma sociedade e de uma cultura da solidão. Do individualismo e do isolamento. É a solidão do carro com as janelas fechadas. Do ar condicionado que faz com que não tomemos conhecimento do clima do lado de fora, nem das pessoas.

Dos deslocamentos em alta velocidade pela cidade inspirado pelo temor de algum tipo de violência contra a vida ou contra o patrimônio que nos diferencia. É a solidão do medo imaginário que faz repelir o outro. É a solidão da playlist e do streaming, que são formatados individualmente. É a solidão de poder perguntar qualquer coisa para o Google sem precisar se dirigir a outra pessoa.

É a solidão de navegar em redes sociais orientadas por algoritmos com a lógica do efeito de confirmação. É a solidão da inteligência artificial cada vez mais customizada e onipresente. É a solidão do shopping center e do condomínio fechado. Do abandono da rua e do espaço público. É a telentrega na porta de casa e a compra pela internet.

A solidão não é a solidão da pandemia. Não veio com ela. A pandemia produz o efeito inconveniente de restringir os hábitos de sociabilidade e de consumo. E talvez com essa interrupção o grau de solidão que construímos cotidianamente em nossas vidas fique mais evidente.

Silvio Romero Martins Machado, 55, é doutor em história,
professor, palestrante e mentor. Vive em Porto Alegre, RS.

 

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