A pandemia bolsonarista e o desprezo pela ciência

A pandemia bolsonarista e o desprezo pela ciência
(Reprodução)

 

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Há pouco mais de um ano, nos últimos dias do mês de março de 2019, Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas comemorassem o golpe militar de 1964. A nota oficial, lida pelo general e porta-voz da presidência da República Otávio do Rego Barros, começava com:

“O presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”.

Apenas dois dias depois, em entrevista dada a um programa televisivo, o presidente voltou ao assunto, afirmando que “não houve ditadura no Brasil”.

Fica aqui a pergunta: de onde lhe advém a autoridade para decidir de forma monocrática sobre a natureza de fatos históricos sobre os quais não recai qualquer dúvida cientificamente válida?

As posições do agora presidente sobre o tema ecoam declarações já há muito proferidas pelo político de longa carreira parlamentar. O inexpressivo deputado do baixo clero virou presidente.  O horror a dados científicos e à autoridade intelectual que o agora presidente sempre demonstrou adquiriu ainda mais visibilidade.

Para a nova direita representada por Bolsonaro não existem mais fatos, só a interpretação ideológica dos fatos. Não há mais ciência, vez que cada ideologia interpreta a realidade em coerência com as suas crenças. Nesse contexto, não importa se a ditadura militar se caracterizou, de fato, pelo fechamento do Congresso, por censura implacável à imprensa, pela cassação de direitos políticos e violação de direitos civis, por perseguição, tortura e assassinato de adversários e dissidentes políticos, por brutal violação do Estado de Direito.

A ciência, o conhecimento formal, a produção intelectual academicamente constituída, nada disso faz sentido para a parcela mais radicalizada – e barulhenta – da base bolsonarista, incluído aí o próprio presidente, seus filhos e vários de seus ministros.

Se parcela expressiva da nova direita que emergiu ao poder acredita que a Terra não é redonda, mas plana, se tem convicção de que vacinas fazem parte de um plano diabólico para matar as pessoas, se está convencida de que o aquecimento global é uma invenção de cientistas de esquerda ou de Leonardo Di Caprio, se crê que universidades públicas sejam antros de comunistas drogados em orgias e balbúrdias sem fim, se acredita e defende que o nazismo é de esquerda e se, por fim, acredita que não houve ditadura militar ou golpe de Estado no Brasil em 1964, por que não poderia começar a decretar que a atual pandemia é uma “fantasia” e as medidas de isolamento uma bobagem causada por “histeria”?

Em entrevista concedida ao Jornal Nacional em agosto de 2018 ainda durante o primeiro turno da campanha presidencial, Bolsonaro foi questionado sobre a defesa que costumeiramente fazia da ditadura militar. Começou sua resposta afirmando:

“Deixe os historiadores pra lá”.

Se trocarmos a ditadura pela pandemia e historiadores por cientistas de outras especialidades, talvez parte da opinião pública entenda – e agora parece ter entendido – a gravidade da situação.

Falta a Bolsonaro (e ao bolsonarismo) as mínimas condições intelectuais, morais e políticas para conduzir o país para fora das diversas crises que já o assolam e para as que se avizinham.

O desprezo de Bolsonaro pela ciência, evidenciado agora pelo absurdo descolamento da realidade da autoridade máxima do país durante uma das maiores crises sanitárias e econômicas já vividas pela humanidade, é uma constante.

A negação da ditadura militar e do golpe de Estado que está na sua origem, assim como a relativização dos milhares de mortos e desaparecidos – apesar das incontáveis evidências científicas contrárias – parece não ter sido suficiente.

O peculiar negacionismo bolsonarista precisou virar questão de saúde pública e ameaçar (literalmente) a vida de milhares de brasileiros para que fosse tratado com a devida seriedade.

Eis a pergunta que se impõe: até quando aceitaremos ter, no sentido contrário ao mais elementar bom senso e em oposição aos princípios científicos e civilizatórios mais básicos, um delirante líder de seita a nos governar?

 

Texto de André Carreira, 39,  é professor de História e doutor em História Social pela USP

 

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