A onça

A onça

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de março de 2021 é “luto”


A Amanaci foi despojada de sua função de onça. Sabem, a Amanaci? Se não a conhecem, apresento-a: a onça pintada ferida nas patas, que recebera tratamento com células-tronco e com raios-laser, sobrevivente das queimadas no pantanal, sobrevivente do descaso ambiental no Brasil, sobrevivente da linha ideológica bolsonarista destrutiva da vida. Como a onça, sigo sendo também sobrevivente. Eu tive um surto de onça um dia: ferida, presa, sem poder sair, eu finquei minhas garras nos azulejos do banheiro e minhas pupilas faiscavam no rosto ardido, que queriam me acordar de um pesadelo: eu queimava como a onça.

Quando eu vi a Amanaci pela primeira vez, ela ainda não tinha esse nome. Era apenas o que é um animal em vida: uma onça sem nome, a onça de todas as onças, exercendo sua vida potente de bicho, não pessoalizada, não tocada pelo nome do homem, pela maldade do homem, pelo descaso do homem, onça sem nome, simplesmente bicho vivo e inteiro rainha de florestas. Quando a vi, ela já tinha sido acudida: viajara mil quilômetros das terras Sul mato-grossenses, sua casa, a Corumbá de Goiás, onde seria tratada por veterinários de mãos delicadas que pegavam em sua grande pata recentemente em chamas. Eu a vi pela TV e ,no primeiro dia em que isso ocorreu, eu chorei. Ela era imensa, potente, com manchas lindas no corpo inteiro, com um torso tão firme e tão forte que ela subiria em dois segundos num baobá dos meus sonhos, daqueles que rumavam ao céu… Ela abocanharia no mínimo instante todas aquelas mãos que levemente tocavam em sua pele queimada. Mas não. Ela estava inerte, deitada, sedada, com os dentões à mostra mas despidos do poder da mordida… Ela arfava, cansada, e deixava que a tocassem nas patas faiscantes.

A onça era, naquela imagem, isso: o retrato de que, diante da morte, todo o poder tem a coragem, a grande coragem, de se humilhar. E eu a vi e a entendia por completo. Porque ela era a onça em mim também: eu, que rebaixava tanto meu poder de vida, nesses tempos de pandemia, só pra poder ter a chance de sobreviver. Mas a onça é melhor do que eu. É muito melhor. E melhor do que você também. Do que nós. Ela é imensamente melhor. Agora um pensamento de onça: “quem me toca pra curar-me é exatamente a mesma mão humana que me fere”… Isso ela deve pensar, deve farejar, deve instintivamente intuir enquanto, na sedação, sonha verdes, sombras e úmidos de seu pantanal hoje queimado.

A onça sem nome não tem mão humana, não é Amanaci, nunca atendeu mais do que a própria fome, não tem ganância para além do que precisa, não estoca carne morta, deixa viver porque sabe que precisa dos úmidos, lança seu rugido sem culpa porque sabe que só cumpre sua função na terra: respeita a cadeia dos eventos vivos enquanto dorme depois de tomar água. Nós!? Somos os que a matamos: os que pariram uma sociedade que foi capaz de engendrar de seu seio vivo bolsonaros e seus filhos, esses que passam tratores e boiadas sobre o mato “da mais verde e tenra esperança humana”; os que a queimam para plantar o que depois será jogado fora ou virará verdes dólares enfiados nas pastilhas redondas escondidas em cuecas podres.

Nós somos uns boçais. A pandemia o provou. Claro, cada um de nós pode se pensar exceção. Cada um de nós temos atitudes altruístas e damos aula e escrevemos e pensamos e fazemos essa crônica e estamos com os movimentos sociais.  E nos colocamos em diálogo com o outro. E revivemos. E somos bondosos. E estamos juntos. E nos cuidamos. Etcetera. Não nego. Também sou boa. Você que me lê também é. Mas é só. Nós falhamos: produzimos o desrespeito deliberado e repetitivo pela vida. E, mesmo morrendo, não paramos: não tivemos a grande coragem… aquela que faz com que, diante da morte, paremos nosso imenso poder; aquela que faz com que, arfados e cansados, procuremos a mão delicada da vida para estancar o sangue queimado e já podre.

Insistimos em negar a nossa miséria e continuar matando e morrendo. Na minha esquina, o bar lotado o prova. No banheiro, eu me queimava como a onça viva sem eira nem beira, sem ter aonde ir, e com medo da mão humana que só cura porque antes feriu. Meu sonho era que a onça não tivesse nome, que continuasse na selva, que não fosse tocada por nós. Meu sonho é que ela ainda tivesse os tendões. Esqueci-me de dizer: a onça sem nome tinha garras e podia subir em qualquer árvore, pular em lago fundo, escalar pedregulho espinhoso… Mas, depois que ela foi tocada pela língua humana, vindo a ser Amanaci, ela perdeu, queimados, os tendões que acionam as garras. Um bicho sem garra despoja-se do seu ser. Viverá em cativeiro.

Eu preferia que a onça em mim nunca tivesse conhecido a Amanaci… Mas vocês sabem: a esperança é nosso atributo e com ele suportamos a nossa miséria. E já que nada mais havia de se fazer naquele ponto – o signo humano já estava entranhado na pele pintada – resolveram chamá-la Amanaci, que é a deusa das chuvas. No meu cativeiro-banheiro, já caída de cansaço, quando decidi me levantar e olhar a terra arrasada em que me encontrava, eu pensei com gravidade: mas ainda choverá, e da sombra correrei pro verde nascente. Lavei o rosto humano e busquei o perdão em Amanaci. Na garra ausente.

Luana Borges, 33, é jornalista e professora.
Vive em Goiânia, Goiás. Tem mestrado
em Literatura pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

 

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