A desfocalização do abstrato ou a quarentena das incertezas

A desfocalização do abstrato ou a quarentena das incertezas
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Por onde se ouça as notícias, a palavra de ordem é incerteza. São muitas, crescentes em progressões geométricas, assim como os números que nos deixam em nebulosa por dentro a cada nova manchete. Nesses tempos de isolamento, resolvi exercer algumas produtividades, tais como a prática de releituras: em vez de novos títulos, dediquei tempo a alguns já lidos, dentre eles o do analista Nassim Thaleb e sua teoria do Cisne Negro. O tempo das quarentenas, assim como o de uma releitura, protagoniza um ponto: ver as coisas, mesmo que já lidas ou vistas, de outra forma. Ressignificar.

Relendo o livro, em um timing quase de filme francês, percebi coisas que antes me fugiram às vistas. E isso por si só já fora uma enorme metáfora da vida em quarentena, me fazendo lembrar, pessoalmente falando, a ratificação de: “Mire e veja”, do incomparável Guimarães Rosa e suas veredas. E tento fazer dessas as minhas palavras de ordem.

Dentre as ideias destacadas (e aqui extrapoladas por mim) por Thaleb, houve: “não somo fabricados para compreender questões abstratas” e que “aleatoriedades e incertezas são abstrações”. De primeiro, neguei. Mas exerci o mire e veja. No meu sistema intuitivo, pensei nas artes e na medicina, campo que vivencio no cotidiano. Ora, pois, pensei: claro que somos fabricados pro abstrato, afinal, é inerente do ser humano sentir. E nada mais real, e ao mesmo tempo abstrato, do que os sentimentos, e a arte é uma representante disso. E nada mais paradoxal (e pelo lado filosófico) do que, mesmo concretas, as incertezas que carregam as decisões médicas.

Se no primeiro momento neguei, no segundo me veio um espiral: justo nós, seres em quarentena, liquidificados por números tão reais que vociferam realidades brutas, não fomos feitos pra incertezas. Mire e veja: os números e seu paradoxo mais elegante. Nada mais concreto do que eles e nada mais incerto do que aquilo que carregam consigo. E só de pensar na própria palavra “quarentena” e sua carga numérica, o colapso sensitivo que experimentei foi ainda pior: as incertezas, probabilísticas ou não, reverberam em nós, assim como todo esse período em que fomos e seguimos submergidos, banhados em tantos tangíveis, e afogados em tantos incertos, pessoais e coletivos.

Seguindo um pouco e extrapolando ainda mais a leitura, surgiu a ideia que somos seres que “acima de tudo, favorecemos o narrado” e desnarrar seria desligar-se das toxicidades do mundo e focar no controle das decisões. Por fim, então, senti que se propor a viver esses dias é desgarrar das nossas próprias compreensões e verdades. Internas e externas. E não há prova de ócio e exercício da mente humana maior do que esse processo, tão enovelado aos tempos de isolamento. Desnarremos.

Pedro Henrique Filgueiras, 24, estudante , Salvador, BA

 

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