A cultura do estupro

A cultura do estupro
Gertrude Abercrombie, The courtship, 1949 (Reproduçaõ)

 

Por Vanessa Lemos

O termo “cultura do estupro” surgiria entre os anos de 1960 e 1970, época de grandes mobilizações feministas nos EUA, Europa e, apesar do regime de ditadura militar instaurado no Brasil, aqui também tiveram diversas manifestações em favor da mulher. O lançamento do livro da americana, Susan Brownmiller, Against our will (Contra a nossa vontade, sem tradução para o português), foi um marco na defesa dos direitos das mulheres. A feminista defendia a ideia de que o estupro não era algo ligado ao desejo sexual, mas ao poder e dominação.

Antes disso, as mulheres estupradas eram consideradas culpadas e os homens, doentes. Elas precisavam provar que tentaram resistir ao estuprador e, dependendo da forma como se vestiam, podiam ser consideradas culpadas. Sua vida sexual pregressa também contava como fator atenuante ou, ainda, o fato de terem vários parceiros poderia querer dizer que consentiam o ato. Havia ainda observações sexistas em livros jurídicos que diziam que a mulher “tem tendência a mentir” e, por isso, a denúncia não era levada a sério.

Isso há mais de 40 anos.

Hoje, a cultura do estupro continua latente, mulheres ainda são julgadas pelas roupas que vestem, o comportamento que adotam, lugares que frequentam, o que bebem e até pela maneira como andam, tudo pode ser considerado “motivo” para serem estupradas.

O cidadão de bem comenta: Se estivesse em casa, não aconteceria isso!

A sociedade brasileira é patriarcal por atavismo, existe uma ideologia de papéis de gênero arraigada de tal forma, que anos de debates feministas ainda não conseguiram desvanece-la.

As pessoas compactuam com a ideia, às vezes, sem perceber. Está incutido nas novelas, publicidade, revistas, são padrões impostos nas entrelinhas, personagens estereotipadas, numa tentativa de modelar comportamentos e adequá-los aos respectivos papéis de gênero.

O estupro só passou a ser crime contra a dignidade e liberdade sexual a partir de 2009, até então, era considerado crime de ação privada contra os costumes. Sim, contra os costumes. Nesse caso, leia-se, crime contra os costumes machistas, pois era crime apenas no caso de um homem atentar contra uma mulher. E só era um crime, pois feria os direitos de marido ou de pai do homem em questão. O fato de a mulher ter sido violentada só importava porque seria vergonhoso para o pai ou marido, não por ela ter sofrido. A lei mudou, mas a mentalidade geral, não.

Até quando?

Quantas de nós já não sentiram nojo por ouvir cantadas maldosas na rua, por ter sido bolinada em transporte público? Ou nunca temeram demonstrar simpatia demais com um colega e ser mal interpretada? Ou trocaram de roupa por achar aquela muito curta, ou justa, ou decotada? As mulheres lutam pelos seus direitos desde sempre, lutaram pelo voto, lutaram para trabalhar sem permissão de marido, pelo direito ao divórcio, a assumir cargos públicos, usar minissaia, direito a estudar, a criar os próprios filhos, a pensar, sair sozinhas, dirigir, ter conta individual em banco.

E hoje, em pleno século 21, a mulher ainda precisa lutar pela equiparação salarial, pelo direito de andar sozinha na rua e não ser estuprada – e poder abortar caso seja -, não ter filhos se não quiser, não casar, poder assumir sua orientação sexual, usar qualquer tipo de roupa, entre outras coisas. A mulher não é obrigada a se adequar para estar inserida. Ou não deveria ser.

A cultura do estupro só é possível onde há machismo, sexismo, onde as desigualdades entre os gêneros são tão grandes, que a desumanização da mulher se torne algo normal. A mulher não merece ser estuprada, ela não é um objeto, não pertence ao homem, ou à Igreja, ou à família ou a ninguém.

Ela é um ser humano e não veio ao mundo para satisfazer aos caprichos de homens que precisam dominar para se sentir homens. Sem generalizações, é claro!

Vanessa Lemos é leitora, escritora e viajante

 

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