A catástrofe e sua superação

A catástrofe e sua superação
Mais uma vez, como sempre, é pela organização que se começa qualquer superação (Arte: Andreia Freire / Revista CULT)

 

A vida sempre se redimensiona quando sobrevivemos às catástrofes. Quando permanecemos aqui diante dos traumas, das derrotas, da morte de quem amamos ou da nossa própria morte.  Quando sobrevivemos às perdas em geral. Ou pelo menos àquelas que nos dão a sensação de que algo realmente nos fará falta: um amor, um amigo, um emprego.

No Brasil, vivemos a catástrofe e o trauma da perda da democracia. A loucura generalizada se sustenta na base desse trauma social, efetivado pelo Golpe e pela destruição da Constituição. Sobrou o fantasma da democracia na espectropolítica de nossa época. Esse fantasma será manipulado até que se esvaneça completamente diante da descrença e do esquecimento que é o destino inevitável de todas as coisas na era do culto da pressa e dos arquivos digitais que nos tira a memória do corpo. O futuro será do Alzheimer, doença, além de tudo, metonímica do que se tornou a sociedade na época do esfacelamento da linguagem.

Estava aqui pensando na importância de um conceito filosófico tal como o de superação. Nas horas complicadas da vida, esse conceito surge com toda a sua força. A vida das pessoas comuns está intimamente entrelaçada com a vida das sociedades. Há muitas pessoas que não fazem mais do que reproduzir o destino ao qual estão condenadas, sem jamais brigar com essa ideia. Uso aqui a palavra destino em um sentido histórico e não místico ou religioso. Minha intenção é mostrar que, infelizmente, também participamos da construção desse destino.

Nossa pequena história pessoal está intimamente ligada à história humana, no contexto da qual valemos nada. Não somos ninguém e nessa época estranha, em que ninguém se importa mais com história. Pouca gente quer ainda saber de “entrar pra história” ou de “entender o passado para melhorar o presente e o futuro”. Essas ideais simples que muitos desdenham, têm seu valor. Se conseguíssemos pensar do ponto de vista da história da natureza, do universo, do cosmos, saberíamos que somos apenas pó de estrela e, se isso não nos ajuda muito, pelo menos nos faria encontrar alguma poesia. A poesia, por sua vez, é algo valioso em um mundo cujo espírito empobrece a cada dia por efeito do poder, do capital e da maldade humana.

Tradução

Superação é um termo vulgar que autores de auto-ajuda adoram. Mas é também uma tradução mais simples e útil nesse momento para uma palavra alemã sobre a qual tradutores e filósofos discutem até hoje. Convencionou-se, na filosofia de língua portuguesa, a se usar o termo “suprassunção” no lugar de superação. Em alemão, ele serviria para traduzir o importante “Aufhebung” da filosofia de Hegel. Vamos usar superação para ficarmos com algo mais próximo da nossa vida diária.

Por superação se entende a capacidade de avançar no tempo histórico levando aquilo que se aprendeu, aquilo que fica. Deixa-se algo, vai-se a outro lugar, mas não se pode levar tudo. A ideia é avançar sem simplesmente abandonar o que ficou pra trás. Trata-se de um seguir em frente sem abandonar. Isso quer dizer, de tudo o que se vive, de tudo o que acontece, que é preciso saber compreender o que aconteceu. Há coisas que é melhor esquecer, outras que não podem ser esquecidas e, com elas, é preciso seguir. E, sobretudo, na superação, que há algo que não se pode superar. O que não pode ser superado é justamente a história visível, mas também a subterrânea de nossas vidas.

O poder sempre tenta apagar a história. O que aconteceu em nossas vidas e na vida da sociedade compromete todo o nosso ser. Muitas vezes difícil de engolir, outras vezes comprometedor, é inevitável que o passado perturbe. E por isso é importante, quando se quer subjugar e submeter uma pessoa ou uma população inteira, que essa pessoa ou essa população não tenha memória. Que não se pense no passado, que não se conheça o que se viveu, que não se imagine por que e como chegamos no ponto em que estamos da linha do tempo.

Nesse momento cabe pensar no Brasil da invasão dos colonizadores de outrora, que continuam seu trabalho histórico; cabe pensar na escravização que inventou o negro (e vamos lembrar de Achille Mbembe fazendo a crítica dessa invenção) e que continua a se desenvolver com a derrocada dos direitos trabalhistas; cabe pensar na ditadura militar que silenciou, por meio de assassinato e tortura, uma quantidade imensa de pessoas, ativistas, militantes e críticos ao sistema autoritário daquela época e que hoje retorna com todas as suas forças.

Sempre penso nesse conceito hegeliano quando lembro das desgraças que vivemos. No ano passado (cujo cadáver ainda não esfriou na tumba), a coleção de catástrofes foi imensa. Não foram catástrofes da natureza, mas humanas. Perpetradas pela mão humana, ajudadas pelas tecnologias que deveriam servir para produzir um mundo melhor para que todos pudessem viver bem.

Mas um mundo melhor para todos não seria uma boa propaganda para as corporações que ganham rios de dinheiro vendendo violência espetacular e muito medo, produzindo insegurança pela TV para vender segurança de todo tipo, da câmera para controlar a vizinhança até o seguro de vida. A indústria de armas está cansada de não lucrar tanto quanto podia com um país imenso como o Brasil. O consumismo é um paliativo para quem tem a alma arrancada pelas corporações de comunicação e marketing do mundo todo.

Mas vamos falar disso com calma em outra hora.

Por enquanto vamos praticar um ato do espírito.

Um ato do espírito

É terra arrasada, não sobrou nada. Estamos sentados sobre escombros e contemplamos com muita dor o espetáculo. Nossa alma está melancólica, sentimos dores em todo o corpo, não conseguimos acreditar.

Hora de olhar com cuidado. Recolher os trapos, os restos, os cacos, os tocos. Entender o desenho das ruínas.

Hora de pensar em como recomeçar: por onde começar?

Mais uma vez, como sempre, é pela organização que se começa qualquer superação. Seja pessoal, seja coletiva. Não é possível sair do sofrimento pessoal ou coletivo sem que nos organizemos de maneira atenta e metodológica.

Não há chance alguma de seguir e encontrar a superação sem que, depois de uma intensa contemplação que nos faça saber o que realmente sobrou de nós, nos organizemos cuidadosamente para seguir em frente.

Qualquer organização, maior ou menor, movida pelas causas contrárias aos preconceitos e à violência, que queira superar o sofrimento, exige a superação do capitalismo.

O capitalismo, por sua vez, é a pobreza do espírito incapaz da partilha. Incapaz de pensar na sobrevivência sem sofrimento de todas as pessoas que existem. Isso é uma utopia, e é uma ideia exagerada para todas as cabeças que foram convencidas pela adulação capitalista de que são o centro do mundo. Foram enganadas.

O desafio é acabar com o capitalismo dentro de si.

Mas sobre isso, falarei em um próximo post.


> Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

(7) Comentários

  1. Vivemos momentos sombrios em que não sabemos ao certo o que virá depois da névoa cinzenta, mas sabemos que não recusarem diante dela. Pela certeza de que somos mais que toda mediocridade que possa parecer ser infinita. E as mulheres, com suas macro e micro histórias, serão fundamentais nessa evolução humanitária.

  2. Excelente texto, Márcia, querida!
    Superação é isso!

    Temos que seguir em frente.
    Temos que resistir, reagir e agir.
    Nossa luta é contínua, longa…
    Parabéns pelo texto! Saúde para você!

  3. Parabéns Márcia, muito reflexivo esse texto. Vamos superar esses tempos sombrios.

  4. Infelizmente nós que somos de movimentos sociais e humanistas estamos em uma certa inércia; em uma época obscura e de dúvidas. Profetas e militantes como houve no período da ditadura da década de 60, hoje fazem falta. Tempo de silêncio, falta de líderes que possam organizar movimentos. Parece que cada um já foge para sua própria caverna procurando sobrevivência. Tempo de medo, covardia e também de adesão ao capitalismo excludente e desumanizante. Caos

  5. Meu momento pessoal acompanha toda a trajetória da qual você aponta , do começo ao fim do texto. Eu e o país. O capitalismo dentro de cada um de nós e eu sigo buscando poesias diárias.

  6. Tristeza, dor no peito e até dias de cama, direitos violados, medidas inconstitucionais , mas o que mais doeu foi ver amigos polidos se transformarem em inimigos cruéis e vomitar toda sorte de impropérios carregados de ódio, preconceito e arrogância……estou só e sua coragem me faz acreditar ainda. Gratidão ❤️

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