A amargura

A amargura
(Foto: Alex Ivashenko/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”. 


 

Carlos já tinha ido cinco vezes à cozinha, verificado a geladeira, como que procurando algo, e voltado ao quarto, sem propósito.

– Diabo, por que me irrito com isso? – perguntou-se, aflito – Por que simplesmente não vivo minha vida em paz?

E estancou, em pé, o corpo hirto, o peito convulso, os olhos vermelhos de cólera. Por um instante, pareceu se acalmar e seu semblante apaziguou-se. Sentou-se à mesa do computador. Verificou mais uma vez se ela tinha visualizado os stories. Não, não havia.

– Nefasta, relapsa, sem escrúpulos! – voltou à cólera, levantando-se e pondo-se a circular pela casa, quando parou na sala, onde se deparou com a pequena estante de livros. Acalmou-se novamente.

Súbito, bateu o pé:

– Oh, como somos patéticos! Então tudo se resume em um visualizar e um não visualizar, e um responder e um não responder, em uma interação e uma não interação? As paixões reduzidas a visualizar stories, a curtidas, a comentários, e ainda nos sentimos bem com semelhante ninharia. Se não se interage, acabou-se, não há nada, estão de mal, que isto significa guerra… Como somos patéticos!

Carlos esperava há horas que F…, uma paquera volúvel, a quem devotava suas últimas e parcas esperanças no amor, visualizasse seus stories no Instagram, e não se conformava com o fato de ela não ter visualizado ainda. Todos estavam em casa, em quarentena, e ela tinha o dever de visualizar os stories.

– Pois muito bem, não vou mais falar com ela, que vá pro diabo!

Foi à cozinha mais uma vez e de lá voltou com uma cerveja. Novamente ao computador, pôs-se a pesquisar, e estava agora no campo da biologia, nos estudos sobre tropismo.

– Mas veja só que interessante! – bateu com a mão na coxa. – Então é isso que faz meu pé de maracujá se comportar daquela forma. Fototropismo! Vejam só a capacidade do conhecimento humano em desvendar os meandros da natureza. Em que medida podemos pensar em um tropismo social?

Voltou ao Instagram, aos stories. Nada.

De repente, já estava jogando uma partida de xadrez on-line e o adversário se valia de uma defesa siciliana.

– Eu odeio essa defesa. E ainda a variante do dragão!

E perdeu a partida, apesar de estabelecer uma posição vitoriosa, e ficou encolerizado.

– Eu deveria estar sendo mais produtivo! – se lamentou.

E voltou ao Instagram. Verificou mais uma vez se ela tinha visualizado. Nada.

– Certamente não tem mais interesse em mim. Se tivesse, olharia meus stories, que são, diga-se de passagem, muito interessantes.

Foi ao banheiro e olhou a si mesmo no espelho: uma tez pálida, os olhos fundos, um aspecto febril de fantasma, imperfeito, mutilado, caído do pedestal de suas ilusões.

– Eu sou um imbecil!

E mirava-se no espelho, bem no fundo dos olhos, e estremecia. E lembrou-se que, na noite passada, tinha ficado horas pesquisando sobre Reflexo Flehmen, e esboçou um esgar, mostrando os dentes superiores.

Voltou ao computador com mais uma cerveja.

– Olha, meu amigo – disse para si mesmo. – acontece que você vai morrer, eis o fato sombrio, este mundo, em algum momento, será eclipsado pelo fogo, e não haverá senão cinzas do que julgamos alto e nobre, não restará nenhum pensamento, e o amor se acabará, não será nada. Que são stories diante disso? Absolutamente nada.

Verificou mais uma vez se ela tinha visualizado. Nada.

– Que besteira, como posso me importar com isso? Como posso usar isto como parâmetro de qualquer coisa?… Mais uma cerveja, garçom, por favor! – e foi à cozinha, de onde voltou com mais uma cerveja.

E agora dormitava na frente do computador, seus olhos esmoreciam e ameaçavam se fechar. Verificou os stories, as pessoas que tinham visualizado, e nada, nada dela.

Acordou com o rosto contra o teclado do computador, o pescoço em frangalhos, as mãos gélidas, e percebeu, com estupor, que os stories já tinham desaparecido sem que ela os visse.

Cássio Santos Santana, 30 anos,  jornalista, pesquisador (PosCom/UFBA) e escritor

 

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