80 anos de ‘Vidas secas’

80 anos de ‘Vidas secas’
Da esquerda para a direita: traduções em alemão e espanhol de obra de Graciliano (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F04-013 ; GR-F04-054)

 

Em março de 1938, saíam da Empresa Gráfica Revista dos Tribunais os primeiros mil exemplares de Vidas secas, encomendados pela editora José Olympio. Tiragem inicial que levou dez anos para esgotar. É sem receio de encalhe, entretanto, que a Record, editora responsável pela publicação da obra de Graciliano Ramos desde 1975, planeja celebrar os 80 anos do quarto romance do alagoano. A nova edição do livro contará com a reprodução de manuscritos na abertura de cada capítulo. Se é que José Olympio, dono da editora que leva seu nome, tenha em algum momento considerado a publicação um mau negócio, afinal as vendas não expressavam a repercussão do livro desde o lançamento.

Antes de tratar algumas dessas reverberações, vale lembrar um pouco do percurso anterior à publicação de Vidas secas. A propósito, um título que surge a partir de uma conversa com o irmão de José Olympio, uma vez que Graciliano tinha optado por “O mundo coberto de penas”. Mas o significativo título de um dos capítulos do livro soava pouco eficiente para o conjunto, segundo o editor. A primeira opção do alagoano tinha sido ainda “Cardinheiras”. Era menção às aves de arribação que fazem seus ninhos em meio aos espinhos dos cardos e que em Vidas secas surgem como ameaça na formulação de sinha Vitória: “O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado”.

Em fevereiro de 1937, um mês depois de ser posto em liberdade, após dez meses encarcerado pela polícia de Getúlio Vargas, Graciliano publicou “A propósito de seca” no periódico O Observador Econômico e Financeiro, no qual critica a artificialidade da figuração dos retirantes na literatura produzida até então, o que teria despertado no leitor, nas palavras dele, “compaixão e algum desprezo, compaixão porque ele era evidentemente infeliz, desprezo por ser um indivíduo inferior, vagabundo e meio selvagem”. O escritor segue sua argumentação no sentido de desconstruir o determinismo naturalista: “Certamente há demasiada miséria no sertão, como em toda parte, mas não é indispensável que a chuva falte para que o camponês pobre se desfaça dos filhos inúteis”.

No mesmo artigo de 1937, que faz parte de um conjunto maior de escritos publicados na imprensa e reunidos por Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn em Cangaços, Graciliano afirma: “O cangaceiro atual é uma criatura que luta para não morrer de fome”. Note-se que é o ano anterior à publicação de Vidas secas e também o do assassinato de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e de seu bando, em julho de 1938, episódio que o escritor tratará na crônica “Cabeças” (Diário de Notícias), que também pode ser lida em Cangaços. “O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver”, escreveu Graciliano.

Apesar de presente em suas páginas, Vidas secas não é um livro sobre o cangaço, mas sobre a cangaia. Fabiano é rês presa à família, este, mesmo tomado do desejo de vingança que o soldado amarelo lhe inspirava, pensa que seria inútil matar um, pois seu dono continuaria a mandar mais. Também não se tornará um cangaceiro.

Assim como o reconhecimento de uma ética em relação ao tratamento dado aos personagens, ao uso da terceira pessoa que sonda interioridades sem superioridade e ao mesmo tempo sem o apagamento da própria presença de narrador a conduzir o que se passa (e também o que permanece ou retorna em círculos), boa parte da matéria a ser tratada em Vidas secas já estava contida nas formulações do texto mencionado, sobretudo no sentido que o título escolhido imprime, pois trata de vidas, e não de mera paisagem, sobre as quais “a seca é apenas uma das causas da fome”.

Vidas que correspondem a mundos interiores, portanto em nada inferiores no quesito humanidade. Ainda que Fabiano insista em se corrigir ao afirmar ser bicho, logo depois de exclamar em voz alta tratar-se de um homem. “E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros.” “Cabra”, entre o sujeito e o animal, sobre o qual recai a demasiadamente humana dúvida sobre si como ser, entre outras inquietudes.

O entendimento, por meio da experiência, de tudo o que na natureza é cíclico não deixa de sublinhar a importância de seu faro para a sobrevivência. Faro que, trunfo animal, em nada diz de irracionalidade ou ausência de pensamentos complexos. A dificuldade de organizar o que vai à mente em palavras é que míngua a tentativa de comunicação, e por essa falta Fabiano apanha gratuitamente de um soldado amarelo, dorme nas grades, é explorado na fazenda na qual é vaqueiro, seu trabalho não paga a comida, e os juros são palavrões que quem tem fome não conhece.

Da esquerda para a direita: traduções em português de portugal, inglês e turco (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F04-056 ; GR-F04-007 ; GR-F04-010)
Traduções em português (Portugal), inglês e turco (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F04-056 ; GR-F04-007 ; GR-F04-010)
Da esquerda para a direita: capa da primeira edição de Vidas secas (José Olympio) seguida de suas traduções em russo e holandês (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F04-048 ; GR-F04-014 ; GR-F04-040)
Capa da primeira edição de ‘Vidas secas’ (José Olympio) seguida de suas traduções em russo e holandês (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F04-048 ; GR-F04-014 ; GR-F04-040)

Ainda em agosto de 1937, Graciliano escreve a seu filho Márcio sobre o preparo de um novo romance. Uma “história de bichos, cachorros e matutos”, em que todos são “inteiramente Silvas”, numa referência ao protagonista de Angústia. Segundo ele, censuravam-no por se preocupar apenas com funcionários como Luís da Silva e “classe anexa”. “Salto para o extremo oposto e ofereço ao respeitável público almas de cachorros e outros bichos semelhantes”, afirma e, mais uma vez, aproxima sujeito e animal, visto tratar de almas.

Romance a prestação

Entre a publicação de “A propósito de seca” e o envio da citada carta ao filho, e sem qualquer aviso de tratar-se de um trecho de romance, Graciliano publica o conto “Baleia” no carioca O Jornal, em 23 de maio de 1937. “Utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que os meus amigos esquecessem Baleia”, relata a João Condé, na famosa carta de 1944.

“O conto [“Baleia”] me parecia infame – e surpreendeu-me falarem dele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher e os garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo”, continua Graciliano na correspondência ao amigo, publicada originalmente na revista O Cruzeiro, nos chamados “Arquivos Implacáveis”, assinados pelo destinatário, e depois na versão fac-similar da primeira edição de Vidas secas. “Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram o quarto, o terceiro, etc.”, em seguida Graciliano data a feitura de cada um dos textos, ordem que não corresponde à publicação nos periódicos de dez dos treze capítulos do livro. Ao leitor, a informação de que eram trechos de um romance em andamento apareceu apenas com a publicação de “O mundo coberto de penas” quase seis meses depois da de “Baleia”.

Exonerado de seu cargo em Alagoas, por conta da prisão, o escritor buscava no Rio de Janeiro modos de sobreviver. Pagar o aluguel do quarto de pensão onde morava no Rio e sustentar a mulher Heloísa e os filhos. Publicar seus textos em jornais e revistas foi uma forma de levantar dinheiro.

É sobre essa condição material que Rubem Braga trata nas linhas publicadas no Diário de Notícias em 14 de agosto de 1938: “Eu conheço o quarto onde Graciliano escreveu Vidas secas, e sei mais ou menos a situação em que ele escreveu. Essa situação determinou a própria estrutura do romance. […] Cada capítulo desse pequeno livro dispõe de uma certa autonomia e é capaz de viver por si mesmo. […] Graciliano não fez assim por recreação literária. Fez por necessidade financeira. Ia escrevendo e ia vendendo o romance a prestação. […] Foi colocando aquilo a varejo, em nosso pobre mercado literário. Depois vendeu tudo por atacado, com o nome do romance./ Quase tão pobre como Fabiano, o autor fez assim uma nova técnica de romance no Brasil. O romance desmontável”.

Manuscrito original de trecho de Vidas secas, 4 de maio, 1937 (Editora Record / Divulga)

Desmonte do desmontável

Quem primeiro chamou atenção para uma descontinuidade da estrutura do livro foi a crítica Lúcia Miguel Pereira em resenha no Boletim Ariel, de maio de 1938. “Será um romance?”, questiona, para em seguida afirmar: “É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza”. Álvaro Lins, por sua vez, viu defeito romanesco no caráter fragmentário do livro, e Affonso Romano de Sant’Anna falou de um “critério aleatório”.

Um dos estudiosos que esmiúçam a recepção em torno do aspecto estrutural de Vidas secas é Luís Bueno. Em Uma história do romance de 30, o professor da UFPR questiona a noção de “desmontável” quando mencionada fora do contexto do testemunho de Rubem Braga como companheiro de pensão. Ao analisar leituras que tentam defender a desconexão entre as partes do romance de Graciliano e outras que tentam engessá-la, Bueno encontra argumentos que contraditoriamente reforçam a relação entre o todo.

A relativização da intercambialidade dos capítulos já havia sido apontada por Antonio Candido em Ficção e confissão – publicado como livro em 1956, mas a partir de artigos de 1945 –, ao salientar o encontro entre o primeiro e o último capítulo de Vidas secas e seu caráter circular, em forma de rosácea, como nas cenas inicial e final da Recherche proustiana. Além de Candido, Bueno passa por uma série de outros trabalhos para apresentar a sua própria leitura das conexões, simetrias e continuidades que compõem Vidas secas.

Em meio à orientação que a família de retirantes tem via observação da natureza, sobretudo das estações de seca e chuva, Bueno chama a atenção para a única menção ao tempo decorrido, no capítulo “O soldado amarelo”. Fabiano topa com o agente do governo que o jogara na cadeia “um ano antes”. Como os personagens apenas se lembram do que se passou nos capítulos anteriores, o que se passa entre “Cadeia” e “O soldado amarelo” se dá nesse período e nos seria apresentado em ordem cronológica.

“Inverno” figura como centro especular entre os pares de situações em sua maioria contrárias: “Mudança” e “Fuga”, primeiro e último, “Fabiano” e “O mundo coberto de penas”, segundo e penúltimo, “Cadeia” e “O soldado amarelo”, terceiro e antepenúltimo, e assim sucessivamente. “Uma leitura feita em qualquer outra ordem destruirá esse movimento e romperá uma unidade elaborada de forma sutil, mas sempre identificável. É por isso que se pode dizer que Vidas secas é um romance cuidadosamente montado”, conclui Bueno.

Oito décadas depois, essas são apenas algumas histórias para lembrar a gênese de Vidas secas e alguns, entre outros tantos, debates que a obra inspira desde seu lançamento.


Adilma Secundo Alencar 
é mestranda do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na USP

Luciana Araujo Marques 
é jornalista e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp


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